sábado, dezembro 26, 2009

IMAGINE UM CARAMUJO ERUDITO




IMAGINE UM CARAMUJO ERUDITO
(Do livro Um ano com C. S. Lewis, Editora Ultimato)

De onde vem essa predisposição das pessoas de achar que Deus pode ser tudo, menos o Deus concreto, vivo, desejoso e atuante da teologia cristã? Acho que a razão é a seguinte. Vamos imaginar um caramujo totalmente erudito, um verdadeiro guru entre os caramujos, que (em uma visão arrebatadora) consegue ver, ainda que de relance, o que é um ser humano. Na tentativa de transmitir suas visões aos seus discípulos, os quais já têm seus próprios conceitos sobre o assunto (ainda que menos informados do que ele), ele terá de usar muitas negações. Terá de lhes dizer que nenhum ser humano vive em uma concha; que não vive como um molusco, grudado em uma pedra; que não vive rodeado de água etc. E os discípulos que tiverem alguma visão, certamente, acabarão captando a ideia do que seja o ser humano.

O problema é que chegam então os caramujos intelectuais, eruditos, que escrevem história da filosofia e dão palestras sobre religiões comparadas, mas que nunca tiveram visão por si mesmos. Tudo o que eles conseguem extrair das palavras proféticas do caramujo são apenas os aspectos negativos, tudo isso sem o corretivo de um olhar positivo. Eles constroem, assim, uma imagem do homem como se fosse uma espécie de gelatina amorfa (ela não possui concha), que não existe em um lugar específico (muito menos grudada em alguma pedra), e que jamais se alimenta (não há ondas fazendo o alimento chegar até ela). E, fiéis à sua reverência tradicional pelo homem, eles concluem que ser uma gelatina subnutrida, que vive num vácuo sem dimensões, seja o modo supremo de existência. Assim, rotulam como grotesca, materialista até supersticiosa e rejeitam toda doutrina que atribua ao homem uma forma, uma estrutura e um sistema orgânico definidos.

- de Miracles [Milagres]

1914 Lewis e seu amigo de infância Artur Greeves, dos tempos de Belfast, dão início ao que viria a se tornar uma troca de correspondência por toda a vida.

sexta-feira, dezembro 25, 2009

SIMONTON: UM PIONEIRO DO EVANGELHO


Simonton: um pioneiro do Evangelho
Robinson Cavalcanti

Mochila nas Costas e Diário na Mão – a fascinante história de Ashbel Green Simonton, é o novo livro de autoria do Rev. Elben M. Lenz César, diretor da revista Ultimato, publicado dentro da programação comemorativa dos 150 anos do Presbiterianismo no Brasil. Esta obra é uma biografia do pioneiro daquele ramo reformado em nosso país, à base, principalmente, do seu diário. Na contracapa encontramos um bom resumo da vida de Simonton: “Ele organizou o primeiro jornal protestante da América do Sul (1864), a primeira escola paroquial (1866), o primeiro seminário (1867) e ordenou o primeiro pastor brasileiro (1865). Desembarcou no Rio de Janeiro em 1859 e morreu de febre amarela em São Paulo, aos 34 anos, em 1867. Uma vida breve, que mudou a história”.

Embora as igrejas protestantes de imigrantes (anglicanas e luteranas) já estivessem estabelecidas entre nós durante os períodos do Reino Unido e do Primeiro Reinado, é na segunda metade do século 19 (Segundo Reinado e Primeira República) que aportaram aqui os pioneiros do protestantismo de missão aos brasileiros, e em língua portuguesa:

1. Igreja Congregacional: Rev. Robert Reid Kalley – 1855;
2. Igreja Presbiteriana: Rev. Ashbel Green Simonton – 1859;
3. Igreja Metodista: Rev. Junius E. Newman – 1867;
4. Igreja Batista: Reverendos William Buck Bagby e Zacarias Clay Taylor;
5. Igreja Episcopal (Anglicana): Reverendos Lucien Lee Kinsolving (primeiro bispo) e James Watson Morris – 1890.

Esses cinco ramos reformados foram os únicos entre 1855 e 1909, conseguindo se expandir nacionalmente, sob as restrições legais da Constituição Imperial, de 1824, e sob a severa perseguição social durante o período republicano (após 1889). Há textos sobre esse primeiro período de cada igreja e de seus pioneiros. Um livro recomendado para a segunda metade do século 19 é o clássico “Protestantismo, Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil”, de David Gueiros Vieira.

A primeira metade do século 20 presenciou a expansão do protestantismo histórico, de suas igrejas e suas instituições, bem como a chegada do pentecostalismo e dos “corpos de santidade”. Vale destacar:

1. Congregação Cristã do Brasil: Louis Francescon – 1909;
2. Assembléia de Deus: Gunnar Vingren e Daniel Berg – 1910;
3. Exército da Salvação: David Miche – 1922;
4. Igreja do Evangelho Quadrangular: Harold Williams – 1946.

Essa é a época da criação da Associação das Escolas Bíblicas Dominicais e da Confederação Evangélica do Brasil (CEB). Um texto recomendado é “Protestantismo no Brasil”, de Emile Leonard. Há pesquisas sobre pioneiros regionais muito interessantes, como “A Bíblia e o Bisturi”, do Rev. Edjéce Martins, sobre os missionários médicos George Butler, pai e filho, que, a partir da pequena cidade de Canhotinho, PE, irradiaram o presbiterianismo pela região agreste desse estado. Uma análise sobre a missiologia evangelical e ecumênica é o trabalho de Luis Longuini Neto.

Essa história, tão rica, do protestantismo no Brasil, não se resume a nomes e datas, para a implantação de igrejas e instituições e a elaboração de um pensamento, a partir da herança de cada ramo reformado e de sua inserção em nossa cultura luso-afro-ameríndia.

A crise do protestantismo hoje passa pela ignorância e pela rejeição do legado do passado, bem como pela desvalorização da cultura nacional, o que concorre para a irrelevância e a não “inculturação”, a despeito do crescimento quantitativo. Seminários sem as disciplinas de cultura brasileira e teologia latino-americana, e líderes que não conhecem a nossa literatura, nem as clássicas obras interpretativas do Brasil, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Florestan Fernandes e Raymundo Faoro, entre tantos outros, não nos conduzirão a lugar algum.

Embora haja um setor que procura resgatar e atualizar a história e a identidade evangélica em sua brasilidade, o presentismo e o anglosaxonismo (como novo “helenismo”) crescem em duas vertentes:

- a neo(pseudo)pentecostal da prosperidade e batalha espiritual;
- a macetista, das últimas novidades pragmáticas de origem forânea.
Seja a alienação com ênfase no mundo além túmulo e além história (escatologia), seja o sectarismo moralista, seja a criação de bolhas locais personalistas promotoras da salvação das almas mais educação moral e cívica pequeno-burguesa, estaremos naquela de uma estrada que leva do nada a coisa nenhuma.

Ler biografias como a de Simonton, e conhecer experiências regionais, que terminaram no estabelecimento de convenções, presbitérios, sínodos, dioceses, regiões, distritos ou qualquer outra nomenclatura, é saber que é possível fazer história, construir instituições e elaborar ideários. Tem sido assim por dois mil anos quando há convicção, identidade, compromisso e ética.

Daí a procura, nos doze anos passados, por implantar o episcopado e uma diocese anglicana no nordeste do Brasil. Não tinha nada de utopia. Era um projeto plenamente possível se os seus atores – como tantos outros no passado – tivessem agido de boa fé.

Reconhecer porque isso não ocorreu, e como poderia ter ocorrido, é imprescindível para que não venha outra vez a ocorrer. Para avançarmos para o futuro, deixando para trás o passado, não podemos varrer o mal para debaixo do tapete ou sermos paralisados por eternas “gratidões afetivas”. Temos que dar nomes aos bois, explicitando a tragédia dos pecados dos cismas, das heresias e dos projetos personalistas.

Se Simonton tivesse vivido a conjuntura dos anglicanos e “anglicanos” no Nordeste do Brasil nos anos recentes, sua história e o seu legado teriam sido bem diferentes.

Para construir a história é preciso aprender com ela, se queremos chegar a algum lugar.


• Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife.